quarta-feira, 21 de abril de 2010

Henry Miller por ele mesmo

"Eu era meu pior inimigo. Do que eu desejasse fazer nada havia que eu não pudesse também deixar de fazer. Mesmo em criança, quando nada me faltava, eu queria morrer: queria entregar-me porque não via sentido em lutar. Sentia que nada seria provado, justificado, somado ou subtraído se eu continuasse uma existência que não havia pedido. Todos ao meu redor eram fracassados e, se não fracassados, ridículos. Especialmente os que haviam vencido. Estes me faziam chorar de enfado. Eu era indulgente com as faltas, mas não era simpatia que me impulsionava. Era uma qualidade puramente negativa, uma fraqueza que florescia à simples vista da miséria humana. Nunca ajudei alguém esperando que disso resultasse algum bem. Ajudava porque era incapaz de agir de outra maneira. Querer mudar o estado de coisas parecia-me fútil. Estava convencido de que nada seria mudado, a não ser por uma mudança de coração, e quem poderia mudar o coração dos homens? De vez em quando um amigo se convertia. Era algo que dava vontade de vomitar. Eu não tinha mais necessidade de Deus que Êle de mim e, se existisse Deus, dizia muitas vezes comigo mesmo, eu O enfrentaria calmamente e cuspiria na sua cara.(...)
Desde o começo devo ter-me treinado a não desejar muito coisa alguma. Desde o começo fui independente, de uma maneira falsa. Não tinha necessidade de ninguém porque desejava ser livre, desejava ter a liberdade de fazer e dar só quando assim o ditassem meus caprichos. No momento em que algo era esperado ou exigido de mim eu me esquivava. Essa era a forma que tomava minha independência. Em outras palavras, eu era corrupto, corrupto desde o começo. Era como se minha mãe me tivesse alimentado com veneno e, embora desmamado cedo, o veneno nunca tivesse deixado meu organismo. Parece-me que mesmo quando ela me desmamou eu fiquei completamente indiferente. A maioria das crianças revolta-se ou finge revoltar-se, mas eu não dei a menor importância. Ainda em cueiros eu já era filósofo. Era contra a vida, por princípio. Que princípio? O princípio da futilidade.

In: Trópico de Capricórnio. p.3-4

2 comentários:

  1. Sempre - ou quase - somos muito cruéis com a gente mesmo.

    ADORO Miller.

    ResponderExcluir
  2. Idem. Ler certos escritores é como se ler, fazendo alguns descontos.

    ResponderExcluir