sexta-feira, 30 de abril de 2010

Ressaca


São tantas horas, oh céus!
Que vida breve, corriqueira
Ao som da gaita, viajo
Meu copo vazio degusta o vomito da ressaca

Sempre mais um pouco de melancolia
Escorrego nessa vadiagem
Com meus dedos que deslizam num piano imaginável
Componho essa banda que me anestesia

Ainda inebriada, ouço.
Quantas tragadas de vozes graves, desarmônicas.
A flauta em puro pó espera dormente
São ritmos confusos, incompreensíveis

Fatigada das noites
Exilo-me do meu próprio lugarejo
Na pausa descompassada, movimento-me
Um desejo se desfalece e ressuscita antes do fim da noite

Em meio a rebuliços, meus pés se locomovem
O corpo hesita, mas dança por chãos movediços.
Ainda espero o copo, sem o vômito,
antes de hidratar meu paladar embebedado.

Dani R.F.
Pintura de Edward Munch

sábado, 24 de abril de 2010

Cigarronia


A percepção, dose e dose...
Todos os dias, conversas
Vi uma jovem fumando
Era limpa, rica
A pequena, o cigarro
A miúda

Eu vi ontem a coisa
Os que olhavam,
Estavam perdidos
Ela continuava, charmosa...
Ontem a noite, o omisso
Falava, pensava, sentado, pesado...

Acaba mais uma morrendo...

Lucas F. L.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Henry Miller por ele mesmo

"Eu era meu pior inimigo. Do que eu desejasse fazer nada havia que eu não pudesse também deixar de fazer. Mesmo em criança, quando nada me faltava, eu queria morrer: queria entregar-me porque não via sentido em lutar. Sentia que nada seria provado, justificado, somado ou subtraído se eu continuasse uma existência que não havia pedido. Todos ao meu redor eram fracassados e, se não fracassados, ridículos. Especialmente os que haviam vencido. Estes me faziam chorar de enfado. Eu era indulgente com as faltas, mas não era simpatia que me impulsionava. Era uma qualidade puramente negativa, uma fraqueza que florescia à simples vista da miséria humana. Nunca ajudei alguém esperando que disso resultasse algum bem. Ajudava porque era incapaz de agir de outra maneira. Querer mudar o estado de coisas parecia-me fútil. Estava convencido de que nada seria mudado, a não ser por uma mudança de coração, e quem poderia mudar o coração dos homens? De vez em quando um amigo se convertia. Era algo que dava vontade de vomitar. Eu não tinha mais necessidade de Deus que Êle de mim e, se existisse Deus, dizia muitas vezes comigo mesmo, eu O enfrentaria calmamente e cuspiria na sua cara.(...)
Desde o começo devo ter-me treinado a não desejar muito coisa alguma. Desde o começo fui independente, de uma maneira falsa. Não tinha necessidade de ninguém porque desejava ser livre, desejava ter a liberdade de fazer e dar só quando assim o ditassem meus caprichos. No momento em que algo era esperado ou exigido de mim eu me esquivava. Essa era a forma que tomava minha independência. Em outras palavras, eu era corrupto, corrupto desde o começo. Era como se minha mãe me tivesse alimentado com veneno e, embora desmamado cedo, o veneno nunca tivesse deixado meu organismo. Parece-me que mesmo quando ela me desmamou eu fiquei completamente indiferente. A maioria das crianças revolta-se ou finge revoltar-se, mas eu não dei a menor importância. Ainda em cueiros eu já era filósofo. Era contra a vida, por princípio. Que princípio? O princípio da futilidade.

In: Trópico de Capricórnio. p.3-4

Para ela


"Muitas vezes o exemplo tem maior efeito que a palavra para excitar ou para acalmar paixões humanas. Assim, depois das consolações que vos pude oferecer diretamente em nossa conversa, desejo, de longe, colocar sob vossos olhos, em uma carta animada dos mesmos sentimentos, o quadro dos meus próprios infortúnios: espero que, comparando minhas infelicidades às vossas, reconhecereis que vossas provações nada são ou são pouca coisa, e tereis menos dificuldade em suportá-las."

PIERRE ABAILARD
História calamitatum
Primeira carta

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Meu segredo



"Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber. À extremidade de mim estou eu. A que diz palavras. Palavras ao vento? que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo. Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.
Eu estou à beira de meu corpo. Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós."

Clarice Lispector.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Desassossego

 
E se umas idéias incongruentes perpassassem tua mente?
A subserviência a elas te levaria à prisão repentina
E num ímpeto, uma fúria te assolaria e acabaria com tuas forças.

Eis que me sinto inapta a qualquer ato de violência
Mesmo que minhas pernas estejam se debatendo
E minha cabeça corroída pela cólera.

Assim estou,
Assim permaneço.
Desfazendo-me
E refazendo.

Dani R.F.

domingo, 4 de abril de 2010

Henry Miller

Mais do que marginal, ele se diz Inumano.

" Outrora eu pensava que ser humano era o mais alto objetivo que um homem podia ter, mas vejo agora que isso se destinava a destruir-me. Hoje sinto orgulho em dizer que sou inumano, que não pertenço a homens e governos, que nada tenho a ver com crenças e princípios. Nada tenho a ver com a maquinaria rangente da humanidade - eu pertenço à terra! Digo isto deitado em meu travesseiro e posso sentir os chifres nascendo em minhas têmporas. Posso ver ao redor de mim todos aqueles meus malucos antepassados dançando em roda da cama, consolando-me, estimulando-me, vergastando-me com suas línguas de serpente, arreganhando os dentes e olhando-me de soslaio com seus crânios esquivos. Sou inumano! Digo isso com um riso louco e alucinado, e continuarei a dizê-lo ainda que chovam crocodilos. (...) Todo esse vômito de bêbedo, não pedido, não desejado, continuará a fluir interminavelmente através das mentes daqueles que virão no inesgotável vaso que contém a história da raça. Lado a lado com a espécie humana corre outra raça de seres, os inumanos, a raça de artistas que, incitados por desconhecidos impulsos, tomam a massa sem vida de humanidade e, pela febre e pelo fermento com que a impregnam, transformam a massa úmida em pão, e o pão em vinho, e o vinho em canção. (...) Um homem que pertence a essa raça precisa ficar em pé no lugar alto, com palavras desconexas na boca, e arrancar as próprias entranhas. É certo e justo, porque ele precisa! E tudo quanto fique aquém desse aterrorizador espetáculo, tudo quanto seja menos sobressaltante, menos terrificante, menos louco, menos delirante, menos contagiante, não é arte. O resto é falsificação. O resto é humano. O resto pertence à vida e à ausência de vida. "

In: MILLER, Henry. Trópico de Câncer. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003. p. 230-231.